terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Viagem a Oeiras: história e cultura no sertão do Piauí


[...] trago Oeiras tatuada na minha própria alma. Os símbolos maiores e menores desta cidade estão pulsando dentro do meu próprio coração, como sopro de vida a me ligar, cada vez mais, ao fascínio e aos mistérios de nossa terra. 
(Juarez Tapety) 


Quando viajamos pelo interior do Nordeste (e certamente por todo o interior do Brasil) podemos observar uma cena bastante comum: uma pequena cidade que cresce, se avoluma e se desenvolve em torno de uma Igreja, às vezes grande, outras nem tanto. Geralmente esses templos de fé recolhem em seu entorno uma grande praça, criando um binômio infalível de sociabilidade interiorana. Praça e Igreja, geralmente um templo Católico. Era assim que, desde o período colonial, o traçado urbano das nascentes vilas e cidades do interior tinha início. Uma Igreja e/ou um convento, com um adro à frente ou em seu entorno que viria, mais tarde e em muitos casos, a se constituir em praça. Dessa disposição originária, espalhavam-se mais ou menos timidamente um conjunto de ruas em todas as direções, abrigando prédios públicos e residências particulares. Assim parece ser o caso de Oeiras, no interior do Piauí. Igreja e praça como centros do aglomerado urbano tradicional. Assim ocorre também no Crato, em Araripina e Campos Sales, no Ceará. Igualmente em São José do Belmonte e Serra Talhada, em Pernambuco, e em inúmeras cidades do interior nordestino. 

Matriz de Nossa Senhora da Vitória
Em Oeiras essa disposição originária aparece de forma clássica. Primeira vila instituída e primeira capital da então capitania de São João do Piauí, a Vila da Mocha, como era conhecida originalmente, segue à risca essa disposição. Primeiro vieram os desbravadores que fixaram na região as fazendas de gado, às margens do pequeno rio. Depois veio a capela que mais tarde se transformou, em meados de 1733, na Igreja de Nossa Senhora da Vitória, com sua arquitetura tipicamente Jesuítica. De frente para a Igreja, uma enorme praça se estendeu longamente em todas as direções, acomodando inúmeras residências, prédios públicos e órgãos da administração civil e militar. Residências como a do Cônego João, a do coronel da guarda Ângelo Acelino de Miranda, e a casa do primeiro médico da cidade, o cirurgião-mor português José Luís da Silva, foram erigidas nesse enorme quadrado. No entorno da praça e da igreja estão ainda a Casa da Câmara, que foi também cadeia pública, e o sobrado do Capitão-mor João Nepomuceno de Castelo Branco que, além de residência, foi também Câmara, tribunal do juri, grupo escolar e durante muito tempo Palácio dos Bispos de Oeiras. Era mesmo assim e Oeiras segue o caminho de muitas cidades do sertão nordestino que conheci. Originalmente uma fazenda de gado e assentamento humano. Depois, dominada a região, Capela e Igreja Matriz olhando de cima uma enorme praça, em torno da qual corria a vida.

A Matriz com a praça em frete
E assim cresceu e floresceu a bela cidade. Um filho ilustre de Oeiras, Dagoberto Carvalho Júnior, médico, professor e escritor dedicado à história de sua terra, afirma com enorme convicção que "Nenhuma cidade é portuguesamente brasileira se não nascer em derredor de uma igreja"(1). Dagoberto tem razão, principalmente em se tratando de sua terra natal! Ele cresceu na cidade, viu a cidade crescer, viveu verdadeiramente essa simbiose toda. Como conhecedor que é de sua amada Oeiras, ele pode dizer com uma certeza quase vertiginosa que "Oeiras nasceu aqui. A matriz dominando a paisagem grande"(2).

Eu Não cheguei a conhecer o escritor oeirense, nascido nos idos de 1948. Mas conheci Oeiras, a sua bela cidade. Durante dois dias, entre 10 e 11 de janeiro de 2015, andamos por suas ruas largas e planas, cheias de história e cultura. Tanta coisa para ver em tão pouco tempo! Começamos pela nossa pousada, a antiga casa do Cônego João. A Pousada do Cônego é uma das casas mais antigas de Oeiras, construída tradicionalmente na forma de U, com jardim interno. Se a sua intenção é conhecer a história e a cultura local, a pousada do Cônego é o lugar certo para se hospedar e começar. Logo em frente à pousada nos deparamos com um espetáculo incrível: o núcleo original da cidade. A Igreja imponente lá no alto e a grande praça, verdinha, bonita e charmosa, acomodando a maioria do casario antigo. Tal é a visão de quem se atreve a cruzar as antigas portas da casa do Cônego. O conjunto compõe um sítio histórico harmonioso, de rara beleza, impar em todo o sertão nordestino, tombado pelo IPHAN.

A pousada do Cônego
A praça da Matriz ou Praça da Vitória.
A praça com a Igreja ao fundo
A catedral de Nossa Senhora da Vitória
Uma vez na praça, é bom caminhar por ela. especialmente num fim de tarde ensolarado. Dali é possível ter uma ideia do que foi Oeiras nos tempos passados e apreciar a bela cidade de hoje em dia. Um passeio manhoso, "molente" como os fins de tarde do sertão. Depois de curtir a maciez da praça e conhecer em detalhes a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Vitória, duas outras igrejas igualmente importantes devem entrar no roteiro: a Igreja de Nossa Senhora do Rosário (dita dos Pretos), segunda igreja construída na cidade, datada do século XVIII, e a Igreja de Nossa Senhora da Conceição (dita Imaculada Conceição dos Homens Pardos), cuja construção foi iniciada no início do século XIX. Em Oeiras era assim, uma igreja para os brancos (a Matriz), uma para os negros e outra para os pardos. Na igreja do Rosário dos Homens Pretos, uma antiga tradição Oeirense foi resgatada: a comunidade do bairro do Rosário fez renascer a tradição do Congo, extinto da cidade nos anos 1930. Desde 1987 a comunidade trouxe de volta a dança e a música de origem africana e hoje já é uma tradição na cidade e uma referência em todo o Brasil. O grupo se apresenta nos festejos de São Sebastião e São Benedito, em janeiro, e Nossa Senhora do Rosário, em outubro.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos
Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos homens pardos

O sobrado do Capitão-mor João Nepomuceno

Depois das igrejas, uma série de outros edifícios merecem ser vistos com paciência. O sobrado do Capitão-mor João Nepomuceno é um deles. Exemplo singular de arquitetura civil do século XIX, o prédio abriga hoje o Museu de Arte Sacra de Oeiras. Um pouco adiante pode-se visitar o Sobrado dos Ferraz, que abrigou, ao mesmo tempo, a câmara provincial no andar superior e a cadeia no seu térreo. Mais recentemente serviu ao Círculo Operário e hoje é a sede da prefeitura local. Outro edifício que merece ser visto é o sobrado do Major Selemérico. Situado de frente para a praça 24 de janeiro, o sobrado foi construído em 1845, pelo então governador Zacarias de Góis, para ser sede do governo da província do Piauí. Ao lado desses grandes sobrados e de suas imponentes igrejas, desenvolveu-se todo um conjunto de residencias, bem cuidadas e preservadas ainda hoje, que fazem do centro histórico de Oeiras um dos mais bem preservados do interior do Nordeste. E, para além desse núcleo histórico central, que conta ainda com a casa do Visconde de Parnaíba (Brigadeiro Manoel de Sousa Martins, um dos principais personagens da independência do Piauí) e a casa das doze janelas, a cidade dispõe de inúmeros outros atrativos históricos no entorno desse centro. A ponte de pedra, primeira construída no estado; a casa da pólvora, que serviu como arsenal na época da capitania e da província e foi palco de um fato marcante na história do Piauí, o "Episódio das Chibatas"(3); as cinco capelinhas dos passos, ponto de parada e inflexão no dia da Procissão dos Passos, tradicional festa religiosa da cidade; o Cine-Teatro Oeiras, construído em 1940 em estilo Art Decó; A praça da Bandeira e seu antigo coreto, o largo do Rosário e o mercado central. 

O Sobrado dos Ferraz
O Sobrado do Major Selemérico
A casa da pólvora
A casa das doze janelas

A cada do Visconde de Parnaíba

Mas nem só de história e patrimônio vive Oeiras. A cidade é conhecida também como "a capital da fé no Piauí", devido às diversas festas religiosas encenadas durante todo o ano. A semana santa, por exemplo, é a maior festa religiosa do estado. Dura praticamente um mês. Um bom exemplo dessa efervescência é a Procissão do Bom Jesus dos Passos, realizada uma semana antes da Sexta-Feira da paixão. A procissão revive o momento dos passos de Jesus até o calvário e é realizada desde o século XVIII. Outras duas procissões animam a cidade na semana santa: a tradicional procissão do Senhor Morto e a procissão do Fogaréu. A Procissão do Fogaréu é um espetáculo à parte. Tradicionalmente ela ocorre "[...] na Quinta-Feira Santa, na qual, aproximadamente às 21 horas, as pessoas deslocam-se para o patamar da catedral de Nossa Senhora da Vitória, onde se inicia o ritual religioso, intercalando silêncio e oração. Participam da Procissão de Fogaréu apenas os homens, de todas as idades e classes sociais. A participação restrita aos homens deve-se ao fato de esta procissão representar a procura de Jesus pelos soldados romanos. Ainda na concentração em frente à catedral, as lâmpadas das ruas coloniais da cidade são apagadas, e os homens presentes portam nas mãos lamparinas artesanais. Ao ser iniciada a procissão, o silêncio é constante, apenas se escuta o som da matraca e do andar dos devotos" (4). A cidade ainda festeja São Sebastião e São Benedito, em janeiro, e Nossa Senhora do Rosário, em outubro, lá no alto, no Largo do Rosário, onde se dança congo e reisado.

Com D. Severa e Maria do Carmo no interior da Igreja do Rosário dos pretos
Oeiras é também uma cidade acolhedora. Neste "Passeio a Oeiras" conhecemos muita gente que nos acolheu de braços abertos. Como esquecer de D. Severa e D. Maria do Carmo, cuidadoras da Igreja do Rosário dos Pretos? Com elas conhecemos a igreja e participamos, como convidados, da missa dominical do dia 11 de janeiro. Como não lembrar do Professor Paulo Castelo Branco de Vasconcellos, professor de História da Arte e Arquitetura, da UFPI? Paulo estava em Oeiras com uma de suas turmas de História da Arte, fazendo um roteiro pela cidade. Nos encontramos à noite, tomamos cerveja e conversamos longamente sobre o Nordeste, o Piauí e a cidade de Oeiras. O resultado é que fomos convidados a segui-lo em suas andanças no dia seguinte. E lá fomos nós, como bons alunos, ouvindo o competentíssimo professor. Como não lembrar de D. Francisca da Conceição dos Santos, uma das guardiãs da história de Oeiras e da Casa da Pólvora? Eximia benzedeira e rezadeira, orgulhosa descendente de escravos. Dona Francisca nos presenteou com cações populares que aprendeu quando jovem. Como não lembrar de Flávio Antônio, também conhecido como Flávio do Congo ou Flávio Pé de Bolo e de Seu Manuel, dois responsáveis pela renascença do Congo em Oeiras? E de José Alberto, o Beto, simpático sacristão da Igreja de N. S. da Vitória? O pai dele foi sacristão por 62 anos e ele vai seguindo os passos de seu genitor. Tanta gente! Tantas lembranças boas! Viajar é bom por isso: conhecer gente nova, conviver, se misturar com as pessoas e sentir o clima a essência do lugar. Sem isso, viajar é mudar o cenário da solidão, como diria Quintana.

Com o professor Paulo Castelo Branco
O professor e sua turma
Com D. Francisca Júlia

Deixo com vocês, para quem se interessar em conhecer melhor a cidade de Oeiras e o estado do Piauí, alguns artigos que garimpei quando estava organizando a postagem. Espero que vocês gostem.

1. Padres e fazendeiros no Piauí colonial: O artigo de Ana Stela e Nívia Paula discute a atuação dos Padres Jesuítas no Piauí colonial do século XVIII. Clique para baixar o artigo.
2. Sentidos da tradição: a experiência religiosa em Oeiras (1959/2008). Artigo de Ariane dos Santos e Áurea Paz que discute os sentidos da espiritualidade e da religiosidade tradicional do povo de Oeiras. Baixe o artigo.
3. Jesuítas no Piauí: Negócios e educação. Francisco mendes e outros relatam a trajetória econômica e educacional dos Jesuítas no Piauí. Baixe o artigo.
4. História e memória da educação em Oeiras (PI). Amanda de Cássia reconstrói aspectos da memória e da história da educação na cidade de Oeiras. Baixe o artigo. 
5. Análise Folkcomunicacional sobre a Festa do Divino Espírito Santo de Oeiras (PI). discute-se os elementos da festa e sua importância para a identidade da cidade. Baixe o artigo.

Notas:
(1) CARVALHO JR. Dagoberto Ferreira de. Passeio a Oeiras. 6ª Edição. Teresina: Fundação Cultural do Piauí, 2010. p. 65.
(2) CARVALHO JR. Dagoberto Ferreira de. Passeio a Oeiras. 6ª Edição. Teresina: Fundação Cultural do Piauí, 2010. p. 65.
(3) No dia 13 de dezembro de 1882 ocorreu em Oeiras um fato que ficou conhecido como "O episódio das Chibatas". Nativos, em pleno meio dia, encapuzados, aplicaram uma sova nos soldados portugueses que guardavam a casa da pólvora. Pretendiam demonstrar com isso o inconformismo dos oeirenses ante o jugo lusitano que oprimia o Piauí na época da independência do Brasil.
(4) Lívia Maria Barroso. Procissão do Fogaréu em Oeiras (PI): um estudo de Folkmídia. p. 168. Acesse o artigo.